Rodantha – Clamada Pelo Abismo

Rodantha ainda estava em choque. Ela já tinha presenciado violência durante boa parte da sua vida. Ainda assim, ele nunca tinha visto uma cena tão brutal quanto aquela que presenciou durante sua primeira missão em nome dos Grutos.

O que eram aquelas frutas?
O que Leo queria de verdade?

Foi uma armação?

Isso valeu mesmo a prata que pegamos dos corpos deles?

Todas essas questões rodeavam a cabeça da jovem enquanto retornavam para zona oeste de Cirana.

“Ei pirralha. Eu vou perguntar de novo? Você quer viver assim?”

Ainda sem resposta. As serpentes na mente de Rodantha se moviam sinuosamente de um lado para o outro de maneira caótica enquanto a jovem vagava seus próprios pensamentos. Teria como voltar atrás agora?

Os quatro Grutos chegaram em casa. Loba foi tirar satisfação diretamente com seu chefe Leo porque se ele estiver tentando matar ela mesmo não tem que temer provocar a ira dele. Turi seguiu para sua própria casa em silêncio. Shandor perguntou mais vez se Rodantha estava bem, mas não teve resposta, então decidiu seguir para bordel mais próximo para esquecer tudo que viu. Rodantha foi deixado na sentado na carroça até outros Grutos virem buscar os cavalos e despertaram ele na marra. Após uma troca de ofensas, a guerreira seguiu para sua própria casa, uma casa simples, porém elegante, pintada em um tom verde claro, com grades altas e um jardim que era bem mantido pelo antigo dono.

Dentro da casa havia um quadro dos seus pais e outro de seu avô, a organização dos móveis parecia seguir alguma ordem lógica do maior para o menor assim como os enfeites dispostos sobre os mesmos. Da porta, olhando para esquerda você veria o sofá de três lugares de costas para a porta, ao lado de sofá de dois lugares virado para o centro formando um L, então próximo a parede a sua frente veria a lareira, então a direita veria uma porta e uma cômoda com objetos diversos depositados sobre ela e no centro da sala onde estava o tapete veria a mesa com uma mesa de centro retangular com objetos dispostos da mesma forma que a sala em si, quase como um mapa, perfeitamente alinhados de forma a agradar a mente de sua dona.

Rodantha seguiu para a porta passando por um corredor até a cozinha onde havia apenas um prato, dois talheres e um copo sobre a bancada da pia, nos armários haviam que diferente da sala estava uma bagunça por dentro apesar de parecerem impecáveis por fora. Ela abriu a magimáquina de resfriamento, popularmente conhecida como geladeira, pegou um pedaço de queijo de cabra para comer e seguiu para o quarto mastigando. Cory tentou comer um pedaço, mas Maria pegou primeiro e as duas cobras ficaram sibilando agressivamente uma para outra.

“Ah calem a boca!! Vocês nem precisam comer!!”

As cobras se abaixaram ao serem repreendidas. Elas não podem ouvir, mas os cérebros são conectados.

“Cory, cospe fora!”

A cobra regurgitou o pedaço de queijo na mão de Rodantha. A górgona nem se importou muito no momento, só largou o pedaço no chão, então seguiu para o quarto onde desabou na cama. Seu quarto tinha uma cama de casal no centro, na esquerda da cama tinha um armário e na direita, uma cômoda escondendo a mancha esquisita que não conseguiu remover, com um espelho grande do lado. Ao contrário da crença popular, ela não iria automaticamente se paralisar ou petrificar quando olhasse. Ela fez um som de frustração e raiva.

Eu sou fraca!

Fraco!

Fraca!

Fraco!

Fraca!

Fraco!

Fraca!

Porra, eu quebrei na minha primeira missão!

Quebrou!

Quebrou!

Quebrou!

Quebrou!

Quebrou!

Quebrou!

Eu não presto pra isso…

Não presta…

Não presta…

Não presta…

Não presta…

Não presta…

Não presta…

Eu deveria só desistir

Desistir…

Desistir…

Desistir…

Desistir…

Desistir…

Desistir…

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TOLA.”

A iluminação falhou, de repente o clima pareceu mudar e o quarto parecia mais quente e no espelho Rodantha pôde ver algo distante, algo colossal, algo sombrio. A sensação de estar diante daquilo era aterrorizante. Alguma coisa no mais profundo âmago dizia que aquilo não pertencia a esse mundo. Um mundo com magia, tecnologia e grandes répteis emplumados, povoado diversos tipos de criaturas, influenciado por deuses e demônios. Mas aquilo não fazia parte de nada disso. Era algo além da sua compreensão.

“Eu não…”
Acredite, tola. Estou bem aqui na sua frente.”

O Arquiduque da Destruição. O Flamejante. Za Drak.

A silhueta se projetou para fora do espelho e então Rodantha se viu pequena perante aquela presença colossal. Apenas a cabeça daquilo preenchia o cômodo inteiro e tudo que ela pode ver claramente através do véu que separa o mundo material do Sonhar e Temor foram um par de olhos amarelos, olhos de serpente como os dela, em uma grande sombra que se projetava quatro vezes para cima como chifres e uma vez para baixo como um longo focinho reptiliano que se mexia como uma boca cheia de dentes pronta para devorar seu minúsculo lanchinho a qualquer momento. 

Rodantha viu seu quarto desaparecer ao seu redor e sentiu como se fosse arrancada da cama e arrastada para dentro da terra por vários quilometros em questão de segundos, então teve uma visão do próprio abismo, um lugar iluminado por uma grande caveira flamejante chama como um sol escaldante, varias montanhas ou torres como espinhos curvos crescendo da terra onde demônios berravam para suas legiões. Então elu se virou para aquele que lhe trouxe ali. Qualquer tentativa do cérebro de Rodantha de entender aquilo era em vão. Ela já viu uma criatura abissal antes, estava ao lado de uma até horas atrás, mas ver Za Drak dentro do próprio abismo era diferente. Era como se vários titãs tivessem cruzado entre si ou sidos costurado juntos como retalhos, dando origem a um ser que é o resultado da mistura de todos eles. A cabeça longa e fina como a de um pé de foice, com uma boca cheia de dentes afiados de até 30 cm como um trovejante, terminando no bico afiado como de uma águia devoradora de gente e ornamentada com quatro chifres como os de um titã de chifres. Seu corpo massivo e coberto de escamas desafiava a ordem natural pois além das quatro patas com garras afiadas o sustentando como as patas de um velejante, tinha um par de asas membranosas como as de réptil voador, mas com quatro dedos e um único esporão se estendendo para frente como uma deturpação da figura sagrada dos morcegos e terminando uma cauda capaz de chicotear alguém para longe como a de um pescoço-longo. E quando ele falava em sua voz lenta, grave e rouca, brasas surgiam entre seus dentes.


Eu escolhi você, criança. Não me decepcione.”

A górgona sentiu sua alma ser jogada de volta para o corpo novamente, então seu corpo começou a se retorcer e se mexer na cama enquanto agarrava os lençóis com tanta força que rasgou alguns pedaços e as cobras em sua cabeça igualmente se retorciam e sentiam as escamas coçando e queimando como se estivesse trocando de pele. Ela sentia seu coração pulsar com tanta força e velocidade que parecia que ia morrer, então quando finalmente conseguiu falar alguma coisa tudo que ela pode gritar foram palavras incompreensíveis para qualquer outro. Mas não eram pedidos de socorro.

“YSS!! YSS!! DEMBA ROKU!!! ZA ROKU ZAT IN MORU!!!”

Rodantha despertou em sua cama horas depois. Sua parte humana lhe fez suar frio. Sua parte serpente fez ele salivar tanto veneno que sua boca estava molhada e pegajosa. Ele se levantou olhando para o espelho com medo, mas não havia mais nada ali, nenhum rastro de que aquilo realmente aconteceu. Se foi real ou não, o górgon não sabe, mas aquilo causou um impacto e marcou para sempre seu coração.

Rodantha passou mais alguns momentos olhando para aquela direção até que pegou o machado que guarda em baixo de sua cama por razões que fazem sentido em sua cabeça e se dirigiu para onde estacam a cômoda e o espelho. Após reconsiderar mais pouco, ele progrediu em retirar todos os objetos de dentro das gavetas e logo em seguida começou a golpear a madeira com o machado até o móvel ser reduzido a nada mais do que lenha para sua lareira. Por fim, ele finalmente relaxou suspirando e jogou o machado encima da cama junto com as roupas, livros e outras coisas, coincidentemente caindo nas mãos de uma boneca de pano que parecia uma menina pálida de cabelos longos e cacheados com costuras nas bochechas.

“Eu ajeito isso depois.”

Rodantha tomou um longo banho para se recuperar, trocou de roupas colocando um chapéu preto e um vestido roxo longo com sapatos simples. A armadura de couro dos Grutos quase não aparecia por baixo do vestido a distancia, mas era possível notar olhando de perto. Ele seguiu para a sede de sua gangue onde Leo com seu pagamento, a mesma taverna onde se conheceram. Chegando lá o clima no geral era agradável, viu Leo sem camisa em uma mesa com uma dríade com uma copa enorme como a de uma arvore de savana sentada sobre seu colo e o beijando, mas também viu que Loba estava bebendo sozinha, tensa, segurando copo de vidro de forma que parecia que poderia quebrar com as mãos a qualquer momento. A bárbara notou Rodantha chegando também e apenas meneou a cabeça negativamente e olhou para baixo, sentindo-se impotente. O que o frágil sátiro poderia fazer contra aquela gigantesca humana? Nada. Mas ainda assim, alguma coisa que ele disse ou fez foi capaz de intimidá-la a este ponto. Rodantha achou isso interessante.

Elu se aproximou, notou a tatuagem no dorso de seu chefe e os três pontos pretos embaixo dos olhos da dríade, então ficou de braços cruzados esperando ele ou a dríade notarem sua presença.

“Oh, menine Esmeralda! Bem vinde! Já conhece minha namorada Iuma? Iuma, essa é aquela pessoa que te falei.”

“Muito prazer!”

“O prazer é todo meu, senhorita. Mas…”

“Ah, claro. Aqui, sua parte!”

O líder da gangue jogou o saco de moedas e Rodantha pegou com facilidade. Mas ela queria mais. Não eram respostas, se Loba não deve ter conseguido, ela também não conseguiria.

“Eu quero uma tatuagem.”

“Como?”

“Eu vi que todos vocês tem alguma tatuagem. Até você.”

Ela apontou para o loiro com chifres.

“Não, quero saber como quer. É minha Iuma aqui que faz, ela é uma artista e tanto.”

“Excelente. Podemos fazer agora.”

“Agora?”

Ela olhou para seu namorado como se dissesse “essa ai não tem noção não?” e ele riu dando de ombros.

“Vai lá, eu vou tá aqui te esperando docinho.”

Iuma riu e concordou. Ela seguiu com Rodantha para seu estúdio ilegal nos fundos da taverna. Rodantha se sentou de costas na cadeira e abriu a parte de trás do vestido sem expor a frente.

“Desenhe o símbolo de Za Drak.”

“Oh, temos uma trevosa aqui! Hahahaha! Sério, o que você quer?”

“Eu não estou brincando.”

Iuma esbugalhou os olhos surpresa. Ela já atendeu outros umbranistas, mas ninguém nunca tatuou o símbolo de um Arquiduque em si. É como dizer que seu corpo e alma são devotados a aquele ser.

“Tá bom…”

Porem Rodantha não sabia que as tatuagens feitas por Iuma também não eram brincadeira. Ela estalou os dedos e vinhas surgiram amarrando os braços e pernas de Rodantha.

“Ei, que porra é essa?!”

A dríade não se importou. Ela começou a cravar e queimar a pele escamada de Rodantha com sua tinta arcana permanente marcando as costas dela com o símbolo de um serpente alada com quatro chifres formando um circulo se alcançando sua própria cauda. Rodantha resistiu a dor pois sentiu coisa muito pior hoje, mas ainda assim lacrimejou porque era como se milhares de presas de aranhas perfurassem sua pele enquanto a bruxa fazia sua arte.

“Pronto. Nem foi tão ruim, né? Chorou menos que o Shandor.”

Ela soltou Rodantha e voltou para seu namorado dançando com o som da musica da banda forma pela barda humana de camisa preta, calça jeans e estranhas botas grandes demais para ela e seus elementais de terra, vento e fogo que estavam tocando na taverna agora, deixando Rodantha exausta na cadeira.

Quando teve forças, Rodantha se levantou e então olhou para tatuagem em suas costas no espelho. Ela se recompôs e seguiu abrindo a porta com força para então seguir até Loba e se sentar ao lado dela.

“Sim.”

Rodantha apontou para tatuagem nas costas ainda parcialmente visível com o vestido fechado.

“Eu tenho certeza que quero continuar.”

Loba riu e meneou a cabeça, então deu um tapa no ombro dela sem se importar que ainda deveria estar dolorido.

“Bem vinda aos Grutos de verdade, pirralha.”

Continua em “Rodantha – A górgona que jamais cai

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