Rodantha – Clamada Pelo Abismo

Rodantha ainda estava em choque. Ela já tinha presenciado violência durante boa parte da sua vida. Ainda assim, ele nunca tinha visto uma cena tão brutal quanto aquela que presenciou durante sua primeira missão em nome dos Grutos.

O que eram aquelas frutas?
O que Leo queria de verdade?

Foi uma armação?

Isso valeu mesmo a prata que pegamos dos corpos deles?

Todas essas questões rodeavam a cabeça da jovem enquanto retornavam para zona oeste de Cirana.

“Ei pirralha. Eu vou perguntar de novo? Você quer viver assim?”

Ainda sem resposta. As serpentes na mente de Rodantha se moviam sinuosamente de um lado para o outro de maneira caótica enquanto a jovem vagava seus próprios pensamentos. Teria como voltar atrás agora?

Os quatro Grutos chegaram em casa. Loba foi tirar satisfação diretamente com seu chefe Leo porque se ele estiver tentando matar ela mesmo não tem que temer provocar a ira dele. Turi seguiu para sua própria casa em silêncio. Shandor perguntou mais vez se Rodantha estava bem, mas não teve resposta, então decidiu seguir para bordel mais próximo para esquecer tudo que viu. Rodantha foi deixado na sentado na carroça até outros Grutos virem buscar os cavalos e despertaram ele na marra. Após uma troca de ofensas, a guerreira seguiu para sua própria casa, uma casa simples, porém elegante, pintada em um tom verde claro, com grades altas e um jardim que era bem mantido pelo antigo dono.

Dentro da casa havia um quadro dos seus pais e outro de seu avô, a organização dos móveis parecia seguir alguma ordem lógica do maior para o menor assim como os enfeites dispostos sobre os mesmos. Da porta, olhando para esquerda você veria o sofá de três lugares de costas para a porta, ao lado de sofá de dois lugares virado para o centro formando um L, então próximo a parede a sua frente veria a lareira, então a direita veria uma porta e uma cômoda com objetos diversos depositados sobre ela e no centro da sala onde estava o tapete veria a mesa com uma mesa de centro retangular com objetos dispostos da mesma forma que a sala em si, quase como um mapa, perfeitamente alinhados de forma a agradar a mente de sua dona.

Rodantha seguiu para a porta passando por um corredor até a cozinha onde havia apenas um prato, dois talheres e um copo sobre a bancada da pia, nos armários haviam que diferente da sala estava uma bagunça por dentro apesar de parecerem impecáveis por fora. Ela abriu a magimáquina de resfriamento, popularmente conhecida como geladeira, pegou um pedaço de queijo de cabra para comer e seguiu para o quarto mastigando. Cory tentou comer um pedaço, mas Maria pegou primeiro e as duas cobras ficaram sibilando agressivamente uma para outra.

“Ah calem a boca!! Vocês nem precisam comer!!”

As cobras se abaixaram ao serem repreendidas. Elas não podem ouvir, mas os cérebros são conectados.

“Cory, cospe fora!”

A cobra regurgitou o pedaço de queijo na mão de Rodantha. A górgona nem se importou muito no momento, só largou o pedaço no chão, então seguiu para o quarto onde desabou na cama. Seu quarto tinha uma cama de casal no centro, na esquerda da cama tinha um armário e na direita, uma cômoda escondendo a mancha esquisita que não conseguiu remover, com um espelho grande do lado. Ao contrário da crença popular, ela não iria automaticamente se paralisar ou petrificar quando olhasse. Ela fez um som de frustração e raiva.

Eu sou fraca!

Fraco!

Fraca!

Fraco!

Fraca!

Fraco!

Fraca!

Porra, eu quebrei na minha primeira missão!

Quebrou!

Quebrou!

Quebrou!

Quebrou!

Quebrou!

Quebrou!

Eu não presto pra isso…

Não presta…

Não presta…

Não presta…

Não presta…

Não presta…

Não presta…

Eu deveria só desistir

Desistir…

Desistir…

Desistir…

Desistir…

Desistir…

Desistir…

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TOLA.”

A iluminação falhou, de repente o clima pareceu mudar e o quarto parecia mais quente e no espelho Rodantha pôde ver algo distante, algo colossal, algo sombrio. A sensação de estar diante daquilo era aterrorizante. Alguma coisa no mais profundo âmago dizia que aquilo não pertencia a esse mundo. Um mundo com magia, tecnologia e grandes répteis emplumados, povoado diversos tipos de criaturas, influenciado por deuses e demônios. Mas aquilo não fazia parte de nada disso. Era algo além da sua compreensão.

“Eu não…”
Acredite, tola. Estou bem aqui na sua frente.”

O Arquiduque da Destruição. O Flamejante. Za Drak.

A silhueta se projetou para fora do espelho e então Rodantha se viu pequena perante aquela presença colossal. Apenas a cabeça daquilo preenchia o cômodo inteiro e tudo que ela pode ver claramente através do véu que separa o mundo material do Sonhar e Temor foram um par de olhos amarelos, olhos de serpente como os dela, em uma grande sombra que se projetava quatro vezes para cima como chifres e uma vez para baixo como um longo focinho reptiliano que se mexia como uma boca cheia de dentes pronta para devorar seu minúsculo lanchinho a qualquer momento. 

Rodantha viu seu quarto desaparecer ao seu redor e sentiu como se fosse arrancada da cama e arrastada para dentro da terra por vários quilometros em questão de segundos, então teve uma visão do próprio abismo, um lugar iluminado por uma grande caveira flamejante chama como um sol escaldante, varias montanhas ou torres como espinhos curvos crescendo da terra onde demônios berravam para suas legiões. Então elu se virou para aquele que lhe trouxe ali. Qualquer tentativa do cérebro de Rodantha de entender aquilo era em vão. Ela já viu uma criatura abissal antes, estava ao lado de uma até horas atrás, mas ver Za Drak dentro do próprio abismo era diferente. Era como se vários titãs tivessem cruzado entre si ou sidos costurado juntos como retalhos, dando origem a um ser que é o resultado da mistura de todos eles. A cabeça longa e fina como a de um pé de foice, com uma boca cheia de dentes afiados de até 30 cm como um trovejante, terminando no bico afiado como de uma águia devoradora de gente e ornamentada com quatro chifres como os de um titã de chifres. Seu corpo massivo e coberto de escamas desafiava a ordem natural pois além das quatro patas com garras afiadas o sustentando como as patas de um velejante, tinha um par de asas membranosas como as de réptil voador, mas com quatro dedos e um único esporão se estendendo para frente como uma deturpação da figura sagrada dos morcegos e terminando uma cauda capaz de chicotear alguém para longe como a de um pescoço-longo. E quando ele falava em sua voz lenta, grave e rouca, brasas surgiam entre seus dentes.


Eu escolhi você, criança. Não me decepcione.”

A górgona sentiu sua alma ser jogada de volta para o corpo novamente, então seu corpo começou a se retorcer e se mexer na cama enquanto agarrava os lençóis com tanta força que rasgou alguns pedaços e as cobras em sua cabeça igualmente se retorciam e sentiam as escamas coçando e queimando como se estivesse trocando de pele. Ela sentia seu coração pulsar com tanta força e velocidade que parecia que ia morrer, então quando finalmente conseguiu falar alguma coisa tudo que ela pode gritar foram palavras incompreensíveis para qualquer outro. Mas não eram pedidos de socorro.

“YSS!! YSS!! DEMBA ROKU!!! ZA ROKU ZAT IN MORU!!!”

Rodantha despertou em sua cama horas depois. Sua parte humana lhe fez suar frio. Sua parte serpente fez ele salivar tanto veneno que sua boca estava molhada e pegajosa. Ele se levantou olhando para o espelho com medo, mas não havia mais nada ali, nenhum rastro de que aquilo realmente aconteceu. Se foi real ou não, o górgon não sabe, mas aquilo causou um impacto e marcou para sempre seu coração.

Rodantha passou mais alguns momentos olhando para aquela direção até que pegou o machado que guarda em baixo de sua cama por razões que fazem sentido em sua cabeça e se dirigiu para onde estacam a cômoda e o espelho. Após reconsiderar mais pouco, ele progrediu em retirar todos os objetos de dentro das gavetas e logo em seguida começou a golpear a madeira com o machado até o móvel ser reduzido a nada mais do que lenha para sua lareira. Por fim, ele finalmente relaxou suspirando e jogou o machado encima da cama junto com as roupas, livros e outras coisas, coincidentemente caindo nas mãos de uma boneca de pano que parecia uma menina pálida de cabelos longos e cacheados com costuras nas bochechas.

“Eu ajeito isso depois.”

Rodantha tomou um longo banho para se recuperar, trocou de roupas colocando um chapéu preto e um vestido roxo longo com sapatos simples. A armadura de couro dos Grutos quase não aparecia por baixo do vestido a distancia, mas era possível notar olhando de perto. Ele seguiu para a sede de sua gangue onde Leo com seu pagamento, a mesma taverna onde se conheceram. Chegando lá o clima no geral era agradável, viu Leo sem camisa em uma mesa com uma dríade com uma copa enorme como a de uma arvore de savana sentada sobre seu colo e o beijando, mas também viu que Loba estava bebendo sozinha, tensa, segurando copo de vidro de forma que parecia que poderia quebrar com as mãos a qualquer momento. A bárbara notou Rodantha chegando também e apenas meneou a cabeça negativamente e olhou para baixo, sentindo-se impotente. O que o frágil sátiro poderia fazer contra aquela gigantesca humana? Nada. Mas ainda assim, alguma coisa que ele disse ou fez foi capaz de intimidá-la a este ponto. Rodantha achou isso interessante.

Elu se aproximou, notou a tatuagem no dorso de seu chefe e os três pontos pretos embaixo dos olhos da dríade, então ficou de braços cruzados esperando ele ou a dríade notarem sua presença.

“Oh, menine Esmeralda! Bem vinde! Já conhece minha namorada Iuma? Iuma, essa é aquela pessoa que te falei.”

“Muito prazer!”

“O prazer é todo meu, senhorita. Mas…”

“Ah, claro. Aqui, sua parte!”

O líder da gangue jogou o saco de moedas e Rodantha pegou com facilidade. Mas ela queria mais. Não eram respostas, se Loba não deve ter conseguido, ela também não conseguiria.

“Eu quero uma tatuagem.”

“Como?”

“Eu vi que todos vocês tem alguma tatuagem. Até você.”

Ela apontou para o loiro com chifres.

“Não, quero saber como quer. É minha Iuma aqui que faz, ela é uma artista e tanto.”

“Excelente. Podemos fazer agora.”

“Agora?”

Ela olhou para seu namorado como se dissesse “essa ai não tem noção não?” e ele riu dando de ombros.

“Vai lá, eu vou tá aqui te esperando docinho.”

Iuma riu e concordou. Ela seguiu com Rodantha para seu estúdio ilegal nos fundos da taverna. Rodantha se sentou de costas na cadeira e abriu a parte de trás do vestido sem expor a frente.

“Desenhe o símbolo de Za Drak.”

“Oh, temos uma trevosa aqui! Hahahaha! Sério, o que você quer?”

“Eu não estou brincando.”

Iuma esbugalhou os olhos surpresa. Ela já atendeu outros umbranistas, mas ninguém nunca tatuou o símbolo de um Arquiduque em si. É como dizer que seu corpo e alma são devotados a aquele ser.

“Tá bom…”

Porem Rodantha não sabia que as tatuagens feitas por Iuma também não eram brincadeira. Ela estalou os dedos e vinhas surgiram amarrando os braços e pernas de Rodantha.

“Ei, que porra é essa?!”

A dríade não se importou. Ela começou a cravar e queimar a pele escamada de Rodantha com sua tinta arcana permanente marcando as costas dela com o símbolo de um serpente alada com quatro chifres formando um circulo se alcançando sua própria cauda. Rodantha resistiu a dor pois sentiu coisa muito pior hoje, mas ainda assim lacrimejou porque era como se milhares de presas de aranhas perfurassem sua pele enquanto a bruxa fazia sua arte.

“Pronto. Nem foi tão ruim, né? Chorou menos que o Shandor.”

Ela soltou Rodantha e voltou para seu namorado dançando com o som da musica da banda forma pela barda humana de camisa preta, calça jeans e estranhas botas grandes demais para ela e seus elementais de terra, vento e fogo que estavam tocando na taverna agora, deixando Rodantha exausta na cadeira.

Quando teve forças, Rodantha se levantou e então olhou para tatuagem em suas costas no espelho. Ela se recompôs e seguiu abrindo a porta com força para então seguir até Loba e se sentar ao lado dela.

“Sim.”

Rodantha apontou para tatuagem nas costas ainda parcialmente visível com o vestido fechado.

“Eu tenho certeza que quero continuar.”

Loba riu e meneou a cabeça, então deu um tapa no ombro dela sem se importar que ainda deveria estar dolorido.

“Bem vinda aos Grutos de verdade, pirralha.”

Continua em “Rodantha – A górgona que jamais cai

Rodantha – Negociante de Morte

Rodantha foi admitida na gangue dos Grutos após impressionar seu chefe com prata e violência. Sua perna agora já se recuperou graças ao curandeiro da gangue, mas a gorgona vai se lembrar de tentar não tomar outro tiro. Não demorou muito até que fosse chamada para um serviço após se recuperar.

“Rodantha, né? Tenho uma coisinha que precisa da sua ajuda.”

Rodantha esperou com expectativa nos olhos, mas Leo, o sátiro loiro líder da gangue,não notou pois evitou olhar novamente naqueles olhos de cobra. Ele prosseguiu assumindo que Rodantha era do tipo silenciosa assim mesmo.

“Nós temos uma carga para entregar na zona leste de Cirana, fica a dois dias de viagem de carroça. Ida e volta. Já que dois dos rapazes que iram fazer parte disso tiveram um infeliz incidente no bar, precisamos desses seus brações ai para ajudar em dobro. Acha que dá conta?”
“Eu nem estaria aqui se achasse que não consigo não é?”

Leo riu. Ele acha que ela não vai voltar, mas se voltar, terá realmente provado seu valor. O sátiro deu dois toques no ombro de Rodantha, o que visivelmente incomodou ela pela reação agressiva das cobras em sua cabeça, mas a gorgona pediu perdão e amarrou suas seis serpentes mais agressivas para trás da cabeça como sempre fez. O dia passou sem mais preocupações para Rodantha, terminando no primeiro dia de sua rotina de fazer exercícios, tomar banho e tomar um copo de leite 30 minutos antes de dormir. No dia seguinte estava bem descansada para a viagem que viria e se vestiu com sua nova armadura de couro, então a camisa branca e calça preta por cima, com Corey, Nathan, Eric, Joakim, Derrick e Jamison presos de forma a não incomodarem outras pessoas e atacarem qualquer um que tente chegar por trás de Rodantha. Duas batidas fortes na porta interromperam o alongamento de Rodantha que ainda estava se acostumando com seu novo equipamento.

“Tudo pronto novato?!”

Rodantha abriu a porta com a mão direita deixando sua outra mão oculta, seus olhos encontraram os do orc careca e tatuado nos braços que tinha uma cicatriz horrível no rosto, muito provavelmente feita por algum titã, como são chamados os grandes répteis emplumados nesse mundo.

“Sim. Só vou pegar minha arma.”
“Tu é o novato que o chefe falou? Tu não passa de um palito com cobras na ponta!”
“E você fala muito para alguém prestes a ser capado.”

Ele olhou para baixo ao sentir toque do metal na sua perna. A foice de Rodantha estava na sua mão esquerda, próxima a virilha do orc. Ele instintivamente se afastou e a gorgona recuou sua lamina para a altura do peito, para se defender caso ele atacar.

“Eu observei a armadura que usamos e notei que protege bem o dorso, braços e as pernas, mas deixa a desejar em alguns lugares.”
“Hehe. Garota esperta.”

Quem falou foi uma humana, ruiva, mais velha e mais muscular que a jovem Rodantha. Seu corpo também era tatuado e seu dorso sem armadura estava coberto por uma pele de urso, lembrando a própria deusa ou giganta que Rodantha ouviu falar nas lendas do norte, Bezurga Peledurso. O orc era duas ou três cabeças mais alto que ela e ainda mais forte, de pele verde escura, protegido com uma armadura de couro por baixo da camisa amarela clara assim como Rodantha e seu chefe.

“Então, podemos ir Turi?”
“Claro… E vê se não arranja problemas novato.”

Rodantha deu de ombros e seguiu os dois. Na carroça tinha mais um esperando para começarem a carregar as caixas para dentro, um hakin de chifres encaracolados, cabelo preto liso e longo e pele roxa, muscular e esguio assim como o górgon, com uma rapiera na cintura e uma camisa meio aberta deixando o peitoral sem armadura a mostra com a tatuagem também a vista. Assim que viu a humana lhe ofereceu uma rosa de forma elegante, mas ela passou direto o ignorando e começou a trabalhar. Logo em seguida ele viu Rodantha, passou direto pelo orc e veio se apresentar fazendo um gesto exagerado como se fosse um nobre, mas tendo ela nascido na nobreza, foi fácil ver que era a imitação de um charlatão.

“Shandor Vollonik, vulgo Lamina, muito prazer.”
“Rodantha O’ Mera, vulgo Esmeralda, igualmente.”
“Oh pela Noite! Outro Shandor não!”
“Ah, Turi, você só está com inveja porque eu consegui ume aprendiz e você não.”

Rodantha revirou os olhos e ignorou Shandor, seguindo para trabalhar com a humana. Turi olhou para a cena, então olhou para Shandor surpreso e frustrado e riu alto da cara do companheiro de gangue.

“HAHAHAHAHAHA Acho que foi Loba que ganhou ume aprendiz, não você!”

Enquanto entregava uma caixa para Loba e os outros dois se aproximavam para ajudar, a jovem novata não conseguiu segurar a curiosidade.

“Porque uma pele de urso se te chamam de Loba?”

Loba deu uma única risada enquanto recebia a caixa com seus braços também marcados por cicatrizes.

“Mais tarde eu te mostro pirralha.”

Os dois homens ajudaram a carregar as caixas para dentro da carroça. Rodantha sentiu pena dos cavalos que teriam que puxar duas pessoas enormes e todas essas caixas carregadas com sabe se lá o que. O tempo passou na viajem com os três veteranos conversando enquanto Rodantha permaneceu calado até que um assunto chamou sua atenção.

“Então, alguém sabe o que tem nessas caixas?”
“Cala boca, Shandor!”
“Eu também quero saber, Turi.”
“Você não tem que saber de nada novato, só trabalhar!”

As serpentes se agitaram, mas Loba lançou um olhar severo para ele e Rodantha se controlou.

“Está bem…”

Se ela se revoltar são 3 contra 1. Obviamente não valia a pena tentar. Por agora…

Chegada a primeira noite, deixaram os cavalos descansarem e armaram acampamento. Turi conseguiu lenha e preparou a fogueira, Shandor e Rodantha prepararam as barracas com alguma dificuldade causada pela falta de experiência da gorgona e Loba sumiu por algum tempo, voltando com um cervo nas costas e sangue fresco na boca e mãos. Rodantha pensou que talvez não tivesse notado antes, mas prestando atenção viu que Loba realmente não tinha orelhas pontudas ou caninos alongados, ela não era uma vampira ou filha de um. Quando a nórdica deitou o cervo no chão, Rodantha pôde ver que o pescoço foi cortado com dentes, na jugular…

“…como uma loba faria.”
“Hehe! Agora entendeu pirralha?”

Durante o acampamento, o mesmo clima de companheirismo dos Grutos de longa data permeava o local, deixando a novata silenciosa excluída enquanto comia um pedaço de carne e bebia bebidas sem álcool, já que mesmo que quisesse beber a cerveja também, Turi não permitiu. A adolescente queria uma forma de mostrar para eles que não era mais criança e fez exatamente o que todo adolescente faria nessas horas: agiu como criança.

“Que tal a gente fazer uma aposta então, Turi? Se eu te derrubar, eu posso fazer o que eu quiser sem você ficar me tratando como se eu tivesse 10 anos.”

O orc riu alto. Talvez fosse o álcool fazendo isso, mas ele parecia bem mais simpático agora.

“Quer saber? Que se dane! Eu aposto que você não me derruba nem se encher a cara ahahahahaha! Se eu te derrubar, você vai ter que me respeitar como seu segundo em comando!”

Ele bateu a caneca no banco improvisado com um tronco caído e se levantou. Rodantha se levantou também, se sentindo pequena pela primeira vez em muito tempo já que sempre teve uma estatura acima da média. Ambos estavam desarmados. Turi obviamente tinha a vantagem da força enquanto Rodantha tinha a agilidade. A górgona tomou a inciativa golpeando o orc com um chute na perna para o derrubar, acertando a lateral da panturrilha com o peito do pé com toda força, mas o veterano pareceu nem sentir e bocejou por puro deboche.

“Minha vez.”

O orc deu um único soco que derrubou ela no chão. A jovem apagou e acordou momentos depois ainda delirando, sendo cuidada por Shandor, enquanto Loba dava uma bronca em Turi. Naquela noite, o górgon aprendeu a respeitar seus limites e veteranos.

Mais um dia de viajem e chegaram ao seu destino, uma região mais pobre da cidade-estado, mais para dentro do continente e longe da região portuária a oeste onde fica a base dos Grutos. Loba assumiu a liderança na hora de falar com os compradores que estavam os esperando enquanto Shandor a auxiliava e Turi e Rodantha faziam a guarda, trocando olhares com os diversos outros bandidos ali armados e prontos para atacar a qualquer momento se os Grutos fizessem algum movimento estranho ou se o líder deles mandasse. A novata não estava prestando muita atenção na conversa até perceber que humana estava ficando irritada com os dois elfos das profundezas e o hakin tentava a acalmar, mas parecia ter piorado a situação.

“Mas que merda! Vocês não queriam essa porcaria toda?!”
“Tá maluca sua selvagem? Essa coisa aí é letal! Nós não pedimos por isso!”
“Teu chefe quer foder a gente!”
“Loba, calma, vamos…”
“Fica fora disso ou me ajuda porra! A gente trouxe essa merda toda até aqui a toa então?!”

Rodantha se aproximou tentando não parecer uma ameaça e chamou Loba para perto. A mulher ogrinjörana se abaixou para o górgon falar no ouvido dela.

“Eles já pagaram pela mercadoria?”
“Se tivessem pago, eu taria pouco ligando para o que fizessem com essa merda toda aqui!”
“Então… O chefe só mandou trazer até aqui e voltar com o dinheiro não é mesmo? Ele nunca disse que precisávamos vender. Disse?”

Loba fez uma expressão surpresa com as palavras de Rodantha, então sorriu com malicia.

“Mudança de planos rapazes!”

Loba se pôs de quatro e começou a mudar na frente de todos ali com seus músculos crescendo e mudando de forma dolorosamente, um dos bandidos agora rivais atirou, mas a bala foi dividida no meio pela lamina fina de Shanor fortalecida por sua magia. Shanor balançou a rapiera no ar fazendo movimentos quase como uma dança e isso inspirou seus aliados, fazendo se sentirem mais fortes, mais aptos para lutar. A bárbara uivou reforçando o efeito moral da arte marcial de Shanor e intimidando os inimigos, se revelando uma licantropo vestida com uma pele de urso que então atacou o primeiro inimigo a sua frente. Outro atacou Rodantha por trás e sofreu com a reação das serpentes que ele deixou preparadas para isso, que além de atacarem o dríade, também alertaram o górgon para ele golpear seu inimigo em um contra-ataque com a foice. Mais um dos bandidos atirou com uma bésta, mas Turi defendeu sua cabeça com seus braços fortes e tão grossos quanto uma cabeça humana, parando a flecha em seus músculos e aguentando a dor.

Os bandidos decidiram fugir vendo seu líder sendo devorado pela besta interior da bárbara, correndo e atirando com bestas e pistolas, porém Turi tomou a frente e protegeu seus aliados com o corpo e Shanor logo em seguida veio girando a lamina com o pulso, então colocando dois dedos nos próprios lábios e em seguida tocando em Turi para curá-lo.

“Até o jeito que você faz magia é irritante.”
“Não foi o que seu irmão disse.”

Rodantha se lembrou de ouvir eles falando que o carregamento era letal, então teve uma ideia. Ela correu para as caixas e abriu. Era algo como uma fruta, porém escurecida como se tivesse apodrecida, com espinhos saindo de dentro e exalando um fedor de cadáver. Ela ia pegar com sua mão direita, então repensou e decidiu arriscar a mão não-dominante tocando naquela coisa e rapidamente atirou para direção dos inimigos, errando por usar sua mão esquerda, mas assim que a fruta, ou seja lá o que era aquilo, colidiu com o chão ela explodiu e atirou espinhos para toda parte. Os elfos e dríades atingidos sofreram o que parecia ser uma infecção com seus olhos, boca e narizes liberando lágrimas, saliva e mucosas até sangrar enquanto gritavam em agonia, dor e medo. Os que tentaram arrancar os espinhos do dorso viram seus orgãos sendo puxados para fora junto ou vazando para fora crescendo como um parasita dentro de si.

O bardo não aguentou a cena, mesmo tendo visto sua companheira se tornar uma besta e literalmente devorar a carne de uma pessoa, ele ainda assim regurgitou vendo a cena de horror que a novata causou. Até mesmo a bárbara licantropo estava com o rabo entre as pernas vendo aquilo. O lutador abaixou os braços vendo que quase todos os inimigos estavam mortos ou morrendo. A guerreira no entanto, não esboçou nenhuma grande expressão além arquear as sobrancelhas e abrir mais os seus olhos verdes como esmeralda.

“Filho da puta…”

Loba falou finalmente, sua voz soou como um mistura gutural de voz humana e rosnados lupinos.

“Uma turbulência na estrada e a gente tava morto. Se a gente tivesse jogado as caixas um pro outro, a gente tava morto! O Leo sabia disso com certeza!”

O hakin se levantou limpando a boca com um lenço.

“Você acha que ele armou contra nós? Eu não acho que fizemos nada que desagrade muito ele. Não ao ponto de nos querer mortos, eu acho.”
“Não… Vocês estão olhando isso do jeito errado. Somos só peões na mão dele.”

O homem verde e muscular se virou para a pessoa com serpentes na cabeça ainda em choque pelo que fez.

“Elu. Leo queria testar ê garote.”

Loba se destransformou, tirou sua capa de urso expondo o dorso todo marcado de batalhas e cobriu os ombros Rodantha com seu manto.

“Essa é a vida que você escolheu. Esse é o tipo de corpo que vai ter se seguir esse caminho. Essa é o tipo de merda que vai ter que fazer se continuar com a gente. Você será uma negociante de morte como nós. Tem certeza de que quer isso Rodantha?”

Ela não respondeu ainda.

Continua em “Rodantha – Clamada pelo Abismo

Rodantha – Olhos de Esmeralda

Rodantha é uma górgona de linhagem nobre, filha de um casamento arranjado de pais que nunca se amaram de verdade. Sua mãe uma humana, filha de um guerreiro nobre vindo do insular e montanhoso Menko, seu pai um górgona como Rodantha, um barão tentando entrar para o conselho da cidade-estado de Cirana. Sua pele escamada é clara e amarelada e seus “cabelos” são serpentes venenosas são verdes, assim como seus olhos de pupilas estreitas e verticais, capazes de paralisar outras criaturas. Amaldiçoada ou abençoada pela demonesa Utag’Jil, criadora das górgonas. Infelizmente para a menina com olhos e serpentes cor de esmeralda, as cortes do Império Argênteo eram cruéis em suas disputas de poder e manipulações. Através de anos de esquemas e corrupção, o nome dos O’ Mera foi jogado na decadência e toda sua riqueza perdida em tentativas fúteis de recuperar o poder. Brigas eram constantes na casa e Rodantha passou a viver com seu avô, que a treinou e ensinou as filosofias que foram ensinadas a ele mesmo até que ele faleceu pela idade e Rodantha decidiu fazer seu próprio caminho, ainda adolescente.

Mas Rodantha não deu muito ouvidos ao que seu avô lhe ensinou além de usar armas, palavras e atos para alcançar seus objetivos. Essa não é a história sobre heróis. Esta é uma historia sobre prata, gemas e traições…

“Como você se chama garota?”

Perguntou o sátiro loiro com chifres e orelhas enfeitados com adereços de prata. Um homem de 30 ou 40 anos, barba mau feita, camisa roxa meio aberta mostrando o peitoral muscular e uma calça cinza escuro de cintura alta. Ele estava sentado em frente a uma mesa de madeira com dois homens armados em pé, um humano e um elfo da floresta, dentro de uma taverna onde outros estavam bebendo e se divertindo, provavelmente por serem aliados daquele homem e não ter com o que se preocupar.

“Rodantha O’ Mera. E eu não sou só uma garota.”

Rodantha já tinha um corpo muscular em seus 16 anos, treinado para ser ágil e forte. Bela e mortal. Já sabia que era ambos garota e garoto nesta época e suas roupas refletiam isso, roupas comuns entre nobres vampiros e piratas que queriam aparecer para interesses amorosos no porto, compostos por uma camisa branca, uma calça preta de cintura alta e botas. Em sua cintura, uma foice originalmente feita para cortar vegetais no jardim de seu falecido avô.

“E o que você tem a me oferecer? Pelo seu sotaque você é do norte, não é? Tu é jovem demais para servir como um rosto bonito e nós temos braços mais fortes por aqui.”

O górgon levou sua mão a cintura, os guardas estavam prontos para atirar se necessário, mas Rodantha jogou uma bolsa de moedas na mesa, deixando as peças de prata estampadas com o rosto do imperador imortal Élrik caírem e rolarem até o sátiro parar uma delas com o dedo.

“Oh… E o que uma princezinha rica como você está fazendo em um lugar como essa espelunca? Perdão, devo chamar você de princezinha rica ou principezinho rico?” “Ambos está bom. Eu quero armas. E trabalho. Eu posso fazer muito mais prata com algo melhor do que essa foice.” “Que tal se me mostrar então?”

Quando o sátiro notou a jovem já estava com a mão em seu pescoço. Ele cometeu o erro de olhar nos olhos dela desprotegido. Rodantha pegou sua foice e puxou o sátiro pelo pescoço rapidamente para o usar de escudo quando um dos capangas atirou com a pistola. Outro atirou por trás, mas as serpentes de Rodantha viram, dando a ele a chance de desviar do tiro. Logo em seguida ela correu usando o sátiro ainda paralisado de escudo para cima do guarda a direita e cortou seu pescoço com a foice fazendo sangrar.

O taverneiro gritou surpreso, as pessoas ao redor estavam assustadas, tudo aconteceu muito rápido, em menos de 30 segundos tudo havia se tornado um caos. O outro guarda não sabia o que fazer, não sabia nem se seu chefe estava vivo ainda. Ainda assim, ele não poderia deixar ela fugir e se fosse o ultimo sobrevivente desse conflito poderia usar isso para ganhar reputação e respeito. O bandido atirou, mas o gorgon jogou seu refém na frente ao mesmo tempo, assustando o fora-da-lei e fazendo ele atirar para baixo, atingindo Rodantha na perna. Ele caiu sentindo dor, já leu ouviu falar, pensava estar preparada, mas não esperava que fosse tão quente e doloroso na prática. O humano preparou sua arma de fogo para finalizar a gorgona, mas o sátiro ainda vivo juntou forças e levantou o braço para abaixar a arma dele.

“De repente surgiu uma vaga de guarda-costas não é mesmo? Parabéns princesa, tá contratado.” “O que?! Porra! Ela matou o Denny!”

O sátiro ainda no chão atirou e atingiu a cabeça do humano.

“Duas vagas agora.”

Ele levantou sentindo dor, porém mais acostumado e mais bem preparado que a jovem, então ofereceu a mão para ajudar ela.

“Leonardo Virantes, muito prazer. Como deve ter visto, eu só tenho uma regra na minha gangue: Não me desobedeça.”

Rodantha olhou para o humano morto pelo tiro de seu antigo chefe, ela estava com dor demais para responder verbalmente, então apenas confirmou com a cabeça.

“Ótimo! E uma dica:”

O sátiro abriu mais a camisa mostrando que estava usando uma armadura de couro batido com placas de metal no peito e costas por baixo das roupas.

“Sempre use uma proteção por baixo da roupa.”

Após conseguir juntar forças, Rodantha sorriu para o seu novo chefe de gangue e olhou nos olhos dele novamente, mas dessa vez sem intenção de utilizar sua habilidade.

“Valeu chefe.”

“Ah! Mais uma coisinha. Princesa ou Príncipe não dá certo para você. Que tal se a gente te chamar Esmeralda? Como os olhos sabe?”

O sátiro riu alto e então bateu nas costas de Rodantha.

“Muito bem, Rodantha Olhos de Esmeralda. Eu gosto disso! Bem vindo aos Grutos!”

“Olhos de Esmeralda” ou apenas “Esmeralda”. Era assim que a jovem Rodantha O’ Mera ficou conhecida nesta época de sua vida. Mas aquele guarda-costas não foi o primeiro nem o ultimo que matou e esta era apenas o começo de sua carreira como capanga da gangue dos Grutos.

Continua em “Rodantha – Negociante da Morte