Sombras de Araddun 11 – Guardiões

A Fortaleza de Vadra é firme, mas não impenetrável. As vezes, um grupo criminoso entra como aventureiros, as vezes bruxos ou ladinos burlam os sistemas de segurança tecnomágicos e as vezes um titã quebra os muros ou atravessa por baixo d’água pelo rio.

O Barão D’Água, um dos maiores predadores semi-aquáticos deste continente, de alguma forma chegou ao centro da Fortaleza de Vadra passando despercebido pelo círculo exterior e mediano. As generais tem um mistério em suas mãos, mas isso era um trabalho para Vira pensar depois pois agora Raza já estava tomando a frente para cortar a perna da besta.

“Rabo a esquerda!”

Raza rolou por cima do ombro e golpeou com sua lâmina na outra perna. A criatura se virou para atacar Raza com a boca ao mesmo tempo que Vira correu.

“Impulso!”

Capitão Abdu se posicionou com o escudo para jogar Vira para cima. Mesmo ferido, seu treinamento o manteve firme e forte para isso.
Vira pulou e graciosamente balançou sua espada atingindo o olho da criatura, caindo e rolando logo em seguida.

O titã mudou seu foco novamente e atacou mordendo Vira, mas Raza entrou na frente posicionando seu braço como se segurasse um escudo e uma barreira de energia verde com linhas brancas surgiu parando os dentes do réptil antes de chegar a carne das duas.

Abdu gritou ordens para os soldados que ordenadamente se posicionaram e atacaram atirando lanças no enorme predador, errando em sua maioria pela grande agilidade da criatura que se impulsionou para frente usando os braços como quatro pernas, então virou-se e rugiu para os soldados humanos, feéricos e sintéticos.

Raza desfez sua barreira, deu um beijinho na bochecha de Vira e correu. Ela pulou, golpeou sua grande espada contra o chão atravessando o mármore e empurrou os braços para pegar impulso e girar no ar com a brutalidade de uma fera e graciosidade de um anjo desferindo um golpe na lateral do animal, o sangrando bastante antes de cair com sua espada no chão novamente.

“Não matem, enfraqueçam ele até podermos conter!”

Ela não percebeu a ironia de dar esta ordem coberta de sangue.

“LOYE!”

Todos gritaram em resposta a ordem da general ruiva, incluindo a general loira. Esta por sua vez observou as reações, respiração e movimentos do animal e decidiu fincar sua espada no chão e estender sua mão reunindo mana.

“Besta selvagem que invadiu esta Fortaleza, será agora contida e devolvida a natureza!”

Ela conjurou correntes mágicas brilhando em luz branca com linhas azuis que aprisionaram o Barão D’Água, o fazendo adormecer ao mesmo tempo. Prontamente os soldados amarraram a criatura e começaram a tratar suas feridas para sobreviver a viajem de volta ao lar.

Alguns estrangeiros ou mesmo pessoas vindos de outros mundos poderiam perguntar “por que fazer isso?” ou “Por que não matar a criatura que invadiu sua cidade?”
A resposta é simples. Vadreanos não são guerreiros assassinos e brutais como zandiocas, servanos e ishikali, eles são defensores, guardiões de seu lar, do seu povo e de suas tradições e invenções. Eles defendem, prosperam e resistem juntos enquanto o resto do mundo luta para conquistar, destruir ou dominar uns aos outros.

“Curandeiros! Fala-fera! Avançar!”
“Loye!”

Os lutadores recuaram em guarda enquanto os conjuradores avançaram para cuidar das feridas do animal e se conectar com a mente dele pra descobrir como chegou ali.

“Generais Faradell, Capitão Abdu. Temos um problema…”

O tenente da tropa de fala-fera, um homem meio-elfo de pele morena e cabelos cacheados vestindo roupas tradicionais verdes com um cajado imitando chifres de gazela, falou após passar a mão em frente a cabeça do Barão D’Água. Os três se entreolharam, então Vira falou.

“Diga tenente.”
“Este animal… As últimas memórias dele… Ele não entrou aqui, de alguma forma foi como se um portal tivesse reaberto.”
“Como?!”
“Por favor, seja mais preciso.”
“Esse animal estava nadando no Rio das Sereias perto de Zand quando de repente apareceu no Rio Igbesi!”

Vira foi rápida em comandar.

“Quero todos os magos disponíveis no Igbesi agora! Procurem por qualquer sinal de utilização de magia!”
“Loye!”

Raza deu ordens também.

“Levaremos o animal de volta para o Rio das Sereias! Um batalhão de templários irá junto para proteger os Fala-fera!”
“Loye!”

Ela se virou para sua esposa.

“Vira, eu vou com eles. Podem precisar da minha ajuda caso encontremos outro titã.”

Vira sorriu estoica e cumprimentou sua companheira segurando o braço.

“Loye general Raza.”

Raza a puxou para um abraço, então ouviu a fria cavaleira dizer seus verdadeiros sentimentos.

“Se cuida amor.”
“Você também. Volto logo.”

Raza se afastou e então seguiu para casa, para se preparar para missão. Vira mandou um reporte para a realeza diretamente do artefato em seu pulso para os pássaros tecnomagicos parados sobre a cidade e logo em seguida um pássaro metálico pousou em seu ombro.

“Muito obrigada por protegerem nosso povo novamente. A missão de transporte de Titã está autorizada para general Raza Faradell, um batalhão de soldados da tropa de expedições e um batalhão de fala-fera. Rainha Layomi IV.”

Vira viu o capitão Abdu se preparando para partir também, então logo o interrompeu.

“Capitão! Descanse. Isso é uma ordem.”

Ele olhou para ela com um rosto frustrado e então se recompôs.

“Loye general.”

Então ele riu, se sentando em um banco público.

“Você já tá sabendo não é?”
“Não há segredos em Vadra capitão. Parabéns.”
“Obrigado. Eu nunca pensei que seria pai tão cedo. Estou ainda mais ansioso para ser um herói, ter uma história pra contar, mas também… Não quero morrer. Então, acho que acabo hesitando e errando como hoje mais cedo. Eu salvei uma civil de ser mordida, mas isso quase me custou a vida.”

Ele apontou para onde os dentes amassaram a ombreira e furaram a barreira mágica chegando na pele.
Vira se sentou ao lado dele de joelhos fechados e coluna ereta. Ela tem movimentos tão rígidos quanto um Fadaka e lida melhor com números e papéis do que pessoas, mas está tentando.

“Abdu, eu não sei bem como te falar isso, mas eu sinto isso de certa forma todo dia. Sempre que estou em combate com Raza, sempre que uma de nós sai em missão sozinha. Eu temo pelo que pode acontecer. Mas, é por isso que tento sempre fazer meu melhor, por mim, por ela e por todos vocês.”
“Eu acho que entendo…”
“Eu não digo para não tentar ser heroico. Eu admiro sua bravura. Digo para…”
“Ser o melhor que eu puder?”

Vira sorriu e deu dois tapinhas no ombro de Abdu imitando o que Raza costuma fazer.

Pouco depois Vira chegou em casa, Raza estava no quarto se trocando, tentando vestir uma armadura completa sozinha. Vira admirou as costas musculares de sua esposa antes de bater na porta e se oferecer para ajudar.

“O que você acha que aconteceu com aquele Barão?”
“Eu não sei ainda. Mas pretendo descobrir.”
“E os magos?”
“Nada ainda. Estamos procurando por uma flor específica em um imenso jardim.”
“Pega meu escudo por favor?”

Vira pegou o escudo de Raza, feito de metal, mas com formato imitando a cabeça de um Três Chifres, com bordas feitas para apoiar lanças ou espadas longas. Raza admirou a mulher magra carregando a enorme peça de metal.

“Acabou que não jantamos.”
“Vou preparar algo para quando você voltar.”
“Obrigada querida!”

Raza deu um beijo na bochecha de Vira, então esta beijou na bochecha também e em seguida na boca.

“Boa sorte lá fora.”
“E boa sorte aqui dentro.”

Dessa vez a despedida foi derradeira. Vira não viria Raza até ela retornar. Se ela retornar…

Sombras de Araddun 10 – Poeta

O que está acontecendo aqui?!, este era o pensamento que não saia da cabeça de Bella. A jovem hakin não foi uma das crianças traumatizadas, nem mesmo nasceu em Zand ou Porto Deran, ela veio das terras secas de Servan, onde bandidos e fazendeiros estão praticamente em guerra. Seu pai é um destes foras da lei, assim como sua mãe. Piratas das Areias como são chamados aqueles que cavalgando cavalos e raptores ao mesmo tempo saqueiam fazendas e lutam contra a opressão dos vampiros coronéis. Heróis? Vilões? Isso é uma coisa que a história decidirá. Mas no momento, nossa história não é sobre eles, mas sobre uma criança nascida do amor entre os líderes do maior bando da história, o sátiro “Lanterna” e a elfa “Ana Bela”, a criança nascida das sombras, Antonieta Ferreira, vulgo Bella.

Mas Antonieta quis deixar este passado para trás. Ela abandonou o nome que seus pais lhe deram e usa uma o nome adaptado das palavras em abissal “Bél” e “La”. Bella tornou-se bruxa seguindo a tradição dos feéricos como aprendeu com sua avó e seguiu de carona numa carroça para Zand, chegando justamente quando o caos começou.

Agora, ela e Zura estão chegando a mansão de Iop no centro da cidade que ainda está de pé, carregando o dono do casarão nos ombros das duas pois ele não consegue andar.

“Iop! Iop! Fica comigo, você tá quase longe do perigo! Não durma meu irmão ou não terá salvação!”
“Você quer parar com isso?!”
“Santo Deus, sim! Sim, eu quero nisso por um fim! Mas não consigo parar, só posso falar enquanto rimar!”
“Aar… Agh!”
“Moço, calma!”
“Chave, embaixo…”
“Segura ele por favor, com cuidado e amor.”
“Como? Tá!”

As bochechas de Bella ficaram um em um tom de azul mais escuro. Zura se abaixou e pegou a chave escondida no vaso de plantas, então abriu a porta e voltou a ajudar Iop para levar ele até o sofá, seguindo para cozinha logo em seguida. Agora sem ver o buraco no céu ou ajudando o sátiro a andar, ela pôde perceber que é talvez a maior casa que viu na vida, parecia um palácio de histórias de cordel que seu avô contava.

Zura trouxe um pouco de água para Iop beber e novamente saiu da sala. Bella notou que ele tinha pernas com cascos como as dela e de seu pai, mas as dele eram cobertas por uma pelagem rosa muito clara. Iop parecia melhor agora, mas estava exausto ainda.

“Muito obrigado.”

A voz dele era delicada, suave, apesar de um pouco grave.

“Meu nome é Iop.”
“Bella.”

Zura chegou no mesmo momento, quase como se tivesse aparecido ali acompanhada de uma nota musical, segurando uma madeira, gase, algodão e outros materiais de primeiros socorros.

“Zura.”

Bella estranhou a poeta falando apenas o próprio nome e Zura notou isso.

“Eu não preciso rimar se apenas uma palavra eu falar.”
“Entendi…”
“As regras são estranhas eu sei, mas não fui eu que as criei.”

Zura cuidou das pernas de Iop usando alguns remédios que Bella nunca viu, a hakin acredita que sejam exclusivos desta região mais rica. Ela pegou o estranho vidro para ler, diferente de qualquer poção que sua avó ensinou, no rótulo azul estava escrito uma palavra que parecia abissal e um número enorme.

“Ben… Benzilpe…”
“Benzilpenicilina.”
“Isso é o nome de uma Sombra?”
“Não, mas a dor dessa injeção ainda me assombra.”

Zura levou a mão ao glúteo esquerdo por razões que nem Bella nem Iop compreenderam, mas o sátiro ficou feliz de ver que não era isso que ela usou na perna dele.

“A dor vai passar em breve irmão. Posso ajudar com uma canção?”
“Sem ofensa, mas não acho uma boa hora pra cantar.”
“Então podemos conversar.”
“Você rima com o que eu falo também?”
“Sim.”

Involuntariamente, Bella estava esperando uma rima. Ela colocou a mão na testa pensando no que se meteu.

“Olha, eu já vou indo…”
“Não é seguro ir agora, o mundo está acabando lá fora.”
“Eu sei me virar.”

A hakin abriu a porta e a imensa cabeça de um réptil emplumado foi jogada na porta da mansão. Ela não é supersticiosa, mas aquilo claramente não era bom sinal. Bella fechou a porta e girou em seus cascos de volta para a sala de estar.

“Estava certa ao falar. Você sabe mesmo se virar.”

Zura falou gesticulando com o dedo sobre com como Bella deu meia volta. A Odiada ignorou, caminhou e se sentou na poltrona.

“Então, o que é isso?”
“Violão.”
“Você tá com preguiça de rimar?”
“Sim.”
“E o que é um violão. Em detalhes.”
“Ai você me complica sua arrombada. É difícil improvisar e minha criatividade tá acabada.”
“Oxe! Perdeu a noção?!”
“Claro que não. Minha paciência não é infinita, então esteja preparada filha da bela Anita.”

Neste momento Bella percebeu que Zura sabe mais do que devia.

“Você me conhece?”
“Conheço várias lendas Antonieta, inclusive uma que ainda não está feita.”

Iop, agora já livre da dor, percebeu a tensão crescente, então interviu.

“Meninas, tem bolinhos na cozinha. Posso preparar um chá também. Ou café. Preferem café? Ou suco?”
“Você fique parado, não seja ousado. Eu preparo o café para mim e para descendente de Mathuzafé.”
“Agora tá inventando palavras.”
“Gostaria que eu pudesse, pois falaria com menos estresse.”

Zura foi preparar o café para o pacifista, ela mesma e aquela que tem sangue do mesmo sangue do barão abissal Mathuzafé, deixando os meio caprinos a sós.

“Então… Esse lugar todo é seu?”
“Sim, tive sorte de nascer em uma família abastada.”
“Hum…”
“Mas essa casa enorme não é luxúria minha. Eu forneço comida e estadia para quem precisa em troca de ouvir suas histórias.”
“De graça então?”
“Sim. Eu tenho mais do que preciso, então acho melhor dividir com quem precisa.”
“Você é uma boa pessoa.”

Bella falou com um sorriso.

“Obrigado. Eu só faço minha parte.”

Zura voltou com café, ao mesmo tempo um estrondo do lado de fora os assustou fazendo a humana derramar parte do líquido no chão e por sorte não pegou em seus dedos.

“O que foi isso?!”
“Cinco das sete mãos se reuniram finalmente. Agora a lenda pode seguir em frente!”

Zura colocou as xícaras sobre a mesa de centro e se apressou para abrir a porta, mas se decepcionou ao ver que não tinha ninguém.

“Ué?”
“Aaaah!”

Ela se virou e então sorriu com a visão. Um diabo e uma duende, ambos feridos, sangrando, mas determinados. O maior da dupla apontava uma adaga com cabo de osso para Iop e Bella.

“Só queremos remédios e água. Ninguém precisa se machucar.”

Bella fugiu de seu passado, dos seus pais fora da lei, mas agora estava vendo uma cena muito semelhante ao que via em Servan. A bruxa então conjurou vinhas que saíram do chão e prenderam o braço do hakin vermelho e as pernas da goblin.

“Maravilhoso!”

Zura exclamou de braços abertos, vendo as duas duplas em sua frente.

“Celebremos! A Reunião das Cinco Mãos está concluída! Os aqui presentes são aqueles que conquistarão o tempo e decidirão o destino de toda Araddun! Um irá a todos governar! Dois cairão, mas um retornará e um ascenderá! Três serão um quando todos hadrossauros tiverem cantado! Quatro viajantes visitarão este mundo no momento da perdição e glória! E cinco serão aqueles que vão ficar na sua terra natal enquanto a música e a guerra terão que partir!”

Todos pararam para ouvir o discurso, quase que afetados por uma força sobrenatural. Nem mesmo notaram que ela falou sem rimar de tão concentrados nas palavras.

“Agora que tenho a atenção de vocês, vamos abaixar as armas de uma vez.”

Amon estava abaixando a faca quando ouviu um sussurro e então levantou novamente.

“Não.”

Bella forçou ele a soltar apertando com a vinha. Gira tentou se soltar, mas não conseguiu. Iop fez menção de levantar, mas sentiu as pernas fracas.
Zura virou os olhos frustrada e deu duas palmas, fazendo a atenção de todos se voltar para ela novamente.

“Escutem tolos, eu posso ajudar. Basta você, a arma abaixar.”
“Tá de zoa?”
“Ela só fala rimando.”

Amon desconfiou de Bella, mas olhando para Zura com mais atenção ouviu uma risada estranha e por trás de uma voz grossa e rouca sussurrando uma língua incompreensível para o umbranato.

Tome cuidado. Ela não pertence a este lugar.

Amon não respondeu a voz verbalmente, mas acenou com a cabeça.

“Ô seu arrombado, abaixa a faca! Eu quero que ela ajude a gente pô!”
“Fica quieta aí! Eu não confio em tu também não!”
“O sentimento é reciprucro.”
“Recíproco.”
“Tanto faz manu!”

A humana levou uns segundos para lembrar que manu é como chamam sua espécie neste lugar. Ela decidiu ajudar os dois porque conhece a lenda ainda não escrita, desaparecendo na frente dos quatro com um som de Lá e pouco depois reaparecendo próximo aos dois com os medicamentos necessários ao mesmo tempo que todos ouviram um Dó.

“O-O que?!”
“Que truque foi esse?!”
“Que daora! Cê tem que me ensinar isso!”
“Não é truque e não dá. Mesmo se desse, sei que sua intenção é má. Eu sou viajante, como a gladiadora e o necromante. Nem escondo isso, afinal, vocês não me farão mal.”

O choque ainda era grande. Amon abaixou a faca após receber os tratamentos com algodão, remédios e gaze de Zura.

“Já que estão curiosos, eu vou contar. Vim do planeta azul de apenas um luar. Cheio de água, mas seu nome é Terra. Eu sei, essa confusão sempre ferra.”

Ela riu enquanto cuidava de Gira dessa vez. As palavras saiam com melodia e prendia atenção dos quatro, os fazendo esquecer do medo, da dor, da violência e qualquer outro male.

“Mas foi em outro lugar que recebi minha maldição. Um planeta cercado de anéis como um cinturão. Uma deusa de lá é muito travessa e temperamental e pelo visto não gostou de meu show teatral. Colocou-me está maldição, pois não tinha rimas em minha canção.”
“Você nunca me disse que canção era essa Zura.”
“Uma música cantada pelo xará de um dos umbranatos, traga a existência pela voz de André Mattos.”

Ela apontou para Amon e ele não entendeu o motivo já que os nomes são diferentes.

“Ah é, você não sabia, mas era essa a escolha de sua mãe Emília.”

As memórias distantes voltaram. Memórias perdidas, esquecidas, memórias impossíveis de serem lembradas…

“Emília, você deu a luz a um diabo!”
“Um nome? Eu gosto de André.”
“Emilía, não!”
“Será que você gosta da música André?”
“Padre, por favor! Deve haver outro jeito!”

E então Amon caiu de joelhos, lágrimas caíram de seus olhos e ninguém exceto a musicista viajante entendeu o que estava acontecendo.

“Por que…?”

Sombras de Araddun 9 – Hex

Amon acordou em um lugar estranho, talvez um dos prédios destruídos perto do buraco no céu. Gira, a goblin mercenária, mostrava a ele suas costas com um símbolo mágico escrito em abissal.

“Eu não faço a mais vaga ideia do que cê tá falando.”
“Mano, foi tu que botou esse treco aqui.”
“Eu botei muitas coisas em muitos lugares, mas isso aí não foi eu não parça.”
“Tu é muito do mentiroso em corno?”
“Me conta então o que rolou trasgo!”

Gira se enfureceu e deu um chute no estômago de Amon o fazendo perder o ar por um momento.

“Ninguém NUNCA me chamou de trasgo e viveu pra contar a história!”

Amon tossiu e recuperou o fôlego.

“Digo o mesmo sobre corno.”
“Tu tem coragem pra alguém amarrado.”
“E você tem coragem pra alguém com metade do meu tamanho.”
“Ainda é você que tá amarrado.”

Amon tentou se desamarrar, mas não conseguiu.

“Justo.”

Logo em seguida olhou ao redor tentando achar uma boa rota de fuga, mas mesmo com sua visão no escuro não achou nada. Gira percebeu e cruzou os braços.

“Não adianta. Eu conheço tuas manhas, tu é igual eu.”
“Não todas manhas.”

Ele tentou chicotear a perna dela com o rabo para a derrubar, mas então percebeu que sua cauda também estava amarrada. Gira riu do esforço inútil.

“Filha duma vadia.”
“Agora, como tira esse treco?”
“E eu sei lá! Eu não sei nem como coloquei.”
“Você não lembra real? Sem caô?”
“Tô falando na moral, não lembro de nada desde…”

Eu avisei.

“A água…”
“Água? Aquela coisa que tu jogou em mim?”
“Aquilo era água do Lago Morto!”
“Ué. A gente não deveria virar Perdido então?”
“Não, a gente não morreu pra levantar de novo. Essa parada causa alucinações, visões. É venenoso, mas as pessoas se viciam.”
“E você vende essa merda?”
“Eu vendo o que der dinheiro.”
“Traficante de merda! Não é a toa que tem um prêmio pela sua cabeça.”

Ela cutucou a testa de Amon. Após a provocação ele viu mais de perto o corpo da duende, quase todo exposto exceto por um top, shorts e chinelos.

“Eu tenho uma proposta. Você esquece isso e eu te pago o dobro e algo mais interessante que dinheiro.”
“Tu quase ganhou com ‘te pago o dobro’, mas não foi dessa vez.”
“E a outra parte?”

Gira analisou. Os olhos pareciam sem vida, mas ao mesmo tempo desafiantes, lábios pretos como os dos Conquistadores Pálidos e cabelo longo agora desamarrado que davam a ele um beleza meio fora do padrão.

“Até que você é bonitinho. Vou te levar vivo pra prisão e depois resolvemos essa questão da marca.”

Quando ela fez menção de se mover sentiu a dor nas costas como uma corrente elétrica correndo em sua coluna. Gira gritou e xingou alguns palavrões.

“Eu juro que não fiz nada. Isso rolou sozinho!”
“Ah vai se ferrar! Mentiroso do cacete!”
“Coé?! Eu tô falando na moral! Eu tô com as mãos amarradas e não disse uma palavra!”

Eu o fiz mais forte. Sem pedir nada.

Amon percebeu que era uma voz diferente, não era seu contratante. Era uma voz feminina, antiga porém jovial.

“Baixinha, me dá um copo d’água.”
“Viciou?”
“Não pô, água normal!”

Gira vasculhou o lugar e achou uma garrafa de água mineral.

“Abre a boca e não tenta nenhuma gracinha.”
“Não, eu preciso da água em um copo ou cuia.”
“Que cê quer fazer?”
“Eu vou usar de espelho pra ver quem tá falando comigo.”

Gira virou os olhos impaciente, então pegou o espelhinho de maquiagem no bolso de trás e apontou para Amon. Ele deu de ombros pensando “serve” e focou sua visão no que havia atrás dele. A sua direita, a sombra de grandes chifres, imponente e elegante como um nobre, como sempre esteve desde que salvou sua vida pela segunda vez. Mas a sua esquerda havia algo novo, uma figura distorcida como se estivesse na água, uma mulher de pele clara azulada, rosto inchado e longos cabelos negros flutuando em ondulações.

“Lhor…”

Antes que Gira fizesse alguma pergunta, uma criatura quebra a parede com os chifres e passa atropelando a mesa onde a duende deixou a garrafa. Logo em seguida mais animais reptilianos emplumados atravessam o rastro de destruição deixado pelo titã de três chifres.

“É um estouro!”
“Me solta! Rápido!”

Gira ficou tensa.

“Você não vai ganhar nada se eu for pisoteado ou comido vivo!”

A resolução da pequena gananciosa foi rápida, cortando as cordas e jogando a faca longa para o bruxo.

Para oeste.
As bestas estão indo para leste.

“Por aqui!”
“Tá!”

Ele levou a goblin pela mão quase inconscientemente, um hábito de quando era moleque junto a outros pequenos Odiados e membros da Turba.

Eles seguiram correndo até que uma mão caiu na frente deles. Impossível saber se era humana, vampira ou elfa, apenas puderam ver um titã de couro grosso, cabeça curta e pequenos chifres sobre a cabeça engolindo o restante da vítima. Nenhum dos dois já viu um titã assim antes, provavelmente foi evocado de outro lugar ou era por um mago ou xamã poderoso.

A criatura percebeu os dois que também cheiravam a suor e sangue então tentou abocanhar o meio-diabo, que esquivou por pouco, caindo sentado no chão.

“Levanta, corre!”

Gira ajudou atirando uma faca na criatura, assim tirando atenção dele antes de decorar Amon. Gira correu, pulou por cima de alguns obstáculos e se pendurou em uma placa, então se balançou para subir para o telhado. Um pouco depois da duende disparar Amon correu, pulou chutando a parede em um beco, chutou a outra parede e por fim errou chute caindo de costas no chão e quebrando duas costelas. Gira voltou e viu sua fonte de recompensa no chão cuspindo sangue e atraindo mais titãs que apareceram na cidade ou ficaram soltos quando os seus cavaleiros druidicos elfos morreram ou os abandonaram na confusão que se iniciou com o buraco no céu e um navio surgindo do nada.

Gira desceu e foi ajudar ele a levantar, mas o titã era pequeno e esguio suficiente para caber no beco então iria devorar os dois.

“Ferrou.”

Mas logo em seguida metade do seu corpo fora devorado por um titã maior, de plumas vermelhas e cabeça larga. Com um rugido, todos outros animais se calaram, como se estivessem na presença do rei da natureza.

Eles começaram a despertar.

A criatura ergueu-se acima dos telhados, imponente, poderoso, uma máquina de matar e devorar. O ápice de sua linhagem evolutiva, uma lenda de outra era trazida a vida por razões ainda misteriosas.

Em outro lugar da cidade, duas mulheres, uma humana e uma hakin com cascos, carregavam um sátiro nos ombros. A humana parou e sorriu ouvindo o rugido ecoando pelas ruas.

“Furioso, o rei dos tiranos despertou, igual na lenda que ele me contou.”

*****

Nota do autor: a cargo de curiosidade, eu fiz um teste de Persuasão usando minha velha ficha de quando joguei com Amon nessa parte dele tentar convencer a Gira. Deu 20 (11+9) da Persuasão dele vs 21 (19+2) da sabedoria dela