Sombras de Araddun 8 – Família

Neste mundo existem muitas raças, de humanos e elfos até orcs e hakins, mas nem todas elas são nativa deste continente. Os povos humanos nativos, saurinos, encantados e tritões são os verdadeiros donos desta terra que fora invadida pelos elfos e vampiros a centenas de anos com suas armas de fogo e doenças que levaram a infeliz derrota de muitos dos povos que habitam este lugar.

Muitos dos saurinos que ainda vivem nas aldeias longe do caos urbano de Zand, Porto Deran e Vadra nutrem um ódio profundo contra os invasores, mas outros acreditam que devem resistir e preservar seus costumes sem agir de forma agressiva. Neste momento o cacique do clã Iora se encontra dividido entre essas duas opiniões, com seus conselheiros discutindo em meio a reunião na cabana do chefe.

Grard é um homem saurino muscular, de escamas alaranjadas e focinho curto como um Caçador Sombrio, com penas brancas no queixo e na cabeça e penas avermelhadas descendo pelas costas e se estendendo como asas rudimentares nos braços. Usa apenas uma calça de pano, com o corpo pintado com o grafismo tradicional de seu povo. Ele levantou a mão direita e naquele momento a discussão lentamente parou respeitando o desejo do líder.

“Ficou óbvio que a única coisa em que concordam sobre isso é em discordar. Vamos ao próximo ponto da reunião. Malú?”
“Sim. Eu reuni as profecias anuais dos outros povos como me pediu.”

A saurina filha do pajé desta vila, que no momento se encontra doente demais para reunião, entregou as cartas para Grard. As palavras escritas ali só deveriam ser lidas pelo próprio pajé, mas devido às circunstâncias não era possível.

“Parece que todos viram a mesma coisa…”

Grard colocou a mão com garras no rosto exausto. O que ele menos precisava agora eram mais problemas.

“Escutem com atenção pois só direi uma vez. Uma segunda invasão está vindo. Pior que a primeira, alguém pior do que os elfos. Algo… Além deste mundo.”
“Mais conquistadores pra roubar nossa terra?! Mais doenças para matar nossos irmãos?! Mais missionários para roubar nossas almas e matar nossos deuses?! Chefe, precisamos impedir isso, precisamos lutar!”

O líder dos caçadores se exaltou, mas não estava sozinho neste sentimento. O chefe da aldeia respondeu com as exatas palavras escritas pelos videntes.

Das profundezas as sombras virão, para tomar esta terra novamente.”

Todos permaneceram em silêncio com um semblante sombrio. O chefe da aldeia então seguiu a falar.

“São os espíritos malignos, isso é óbvio. A prole de Juruwaku está vindo. Não sabemos quando ou como irão invadir, mas temo que esse seja o motivo do aumento no número de crianças tocadas pelas sombras nos últimos anos.”
“Eu disse! Devíamos matá-los ao nascer! São parte da cria de Juruwaku!”

Um dos conselheiros gritou fervorosamente.

“Você fala como um maldito missionário!”

Berrou o líder dos caçadores da aldeia.

“Não vamos matar nem abandonar nossas próprias crianças porque nasceram tocadas pelas sombras. Somos Iora, lembre-se disso. Nós somos uma família e família cuida uns dos outros. Essa reunião está encerrada, continuaremos o assunto na próxima noite de lua cheia.”

Os conselheiros insatisfeitos se retiraram, deixando Grard sozinho em sua cabana. Após algum tempo ele ascendeu seu cachimbo e continuou a ponderar sobre tudo que estava acontecendo no mundo naquele momento.

Mais tarde, Grard já havia retornado para sua própria cabana onde estavam sua esposa e filhos, uma das quais se destaca dos outros por sua pele macia e falta de dentes serrilhados, garras e cauda.

“Pai!”

A humana abraçou o imenso reptiliano coberto de penas que a adotou. Ele acariciou os cabelos da adolescente e admirou os grafismos que sua esposa fez no rosto da filha representando a lua e titãs herbívoros com cristas curvas.

“Hoje foi a cerimônia do Ynancy não é mesmo? Você tá crescendo… Eu adoraria poder ver.”
“Você sabe que vocês não podem.”

Grard se lembra de ter espiado com outros meninos na juventude, não pode ver tudo, mas viu que as meninas dançaram em volta da fogueira guiadas pela canção e tambores das mães e avós e depois enterraram seus primeiros ovos vazios onde seria a próxima plantação. A esposa percebeu que ele estava se perguntando o que a humana enterrou então ele contou o segredo no ouvido dele, que esculpiram um ovo de madeira e pintaram com sangue da jovem. Ele, sempre super protetor, ficou preocupado e achou estranho que não havia nenhuma cicatriz nas mãos ou corpo então deduziu que deve ser uma brincadeira.
Um dos outros filhos, este de sangue do seu sangue, o chamou pra brincar e Grard prontamente foi dar atenção ao pequeno. A filha se aproximou da mãe e sentaram juntas observando a família.

“Ele nunca muda.”
“Yatí?”
“Não, seu pai. Ele pode ser o chefe da aldeia agora, mas ainda é o mesmo grandalhão gentil.”
“E você também, tá sempre suspirando enquanto olha ele.”
“Eu suspiro!? Hahaha!”
“Sim, você faz assim ó:”

A garota imitou a bufada com as narinas que sua mãe faz, mas pareceu mais brava do que apaixonada. A senhora riu junto com sua filha, que nunca deixou de notar como o som era diferente em suas bocas.

“Mãe, vocês ainda lembram daquela  promessa?”
“Promessa? Ah… Claro… Eu imaginei que você fosse cobrar, especialmente quando chegasse nos seus quatorze verões.”

O corpo da humana já está mudando, evidenciado mais as diferenças morfológicas entre mamíferos e saurinos. Sua curiosidade sobre suas origens certamente viriam a tona.

O pai retornou e se deitou na rede cansado, interrompendo a conversa sem querer.

“Eu acho que também tô ficando velho minha flor de guaraná.”

A menina temeu o cansaço fosse impedi-lo de poder contar a história que prometeu a tantos anos.

“Pai, você se lembra da promessa?”

Grard levantou mais rápido do que qualquer guerreiro em batalha. Ele foi pego de surpresa pela lembrança do que prometera contar assim que ela tivesse passado o rito da primeira postura em seus quatorze verões.

“Claro, claro…”

Ele olhou para a esposa, os olhos delineados com pinturas vermelhas sobre as escamas verdes olharam de volta.

“Você… Era apenas um bebê. Indefesa. Inocente. E eu… Eu era um guerreiro. Eu tinha o dever de proteger a vila, a todo custo.”

Mesmo não tendo os mesmos músculos faciais, a menina pôde ver o semblante de seu pai mudar.

“Naquela época, o cacique Iobôny, meu pai, havia ordenado que nenhum forasteiro era bem vindo e qualquer um que desrespeitasse os avisos que deixamos na mata seria…”

Ele hesitou vendo os olhos de sua filha.

“Abatido. Seria abatido. Era para nos proteger da doença que se espalhava pelo continente na época, doenças trazidas pelos fáel e gôba, que causavam mal a oroyã e umani também. Seus pais de sangue, ou quem acreditamos que sejam seus pais de sangue, vieram naquela noite. Era uma noite clara, nós tínhamos uma boa visão da mata enquanto ficávamos de guarda.”
“Pai… Você…?”
“Não. Você me conhece, eu não sou assim. Mas eu era exceção. Eles atacaram como era a ordem. Meus irmãos, seus tios que você jamais conheceu…”

A esposa colocou a mão com garras polidas sobre o ombro do marido e da filha adotiva. Ambos estavam com medo. Medo de saber o quão terrível é a verdade. E medo do que pode acontecer após relevar a verdade.
Grard suspirou, trocou um olhar com sua esposa e continuou.

“Meu irmão, Yomyraku, matou o homem com uma flecha no peito. Eu me sinto horrível em te dizer isso…”

A menina sentiu como se uma flecha tivesse atravessado seu próprio coração. Ela ama seu pai, mas dói imaginar o que aconteceu com seu progenitor.

“E então nos revelamos, eu e Môsakí. Cada um com uma lança em mãos e uma facão na cintura. A mulher se encolheu protegendo o que tinha em mãos e junto ao som do tambor de Aharuê, você chorou. O som que mudou tudo. O som que ME mudou. Mas…”

Ele olhou para janela, lembrando de seu irmão.

“Mas isso não impediu meus irmãos… Môsakí atirou a lança e eu o empurrei tentando impedir. A lança atingiu a perna da mulher. Ela caiu, ainda segurando você e protegendo a todo custo. Você chorou mais e meu irmão puxou sua lâmina. Ele me perguntou o que eu estava fazendo e eu não soube responder. Eu tentei impedi-lo mais uma vez, mas uma flecha atravessou entre nós e atingiu a mulher. Yomyraku era o melhor dos nossos arqueiros…”

Ele suspirou pelas narinas com pesar.

“Ele atingiu no peito novamente, mas não no coração. A mulher estendeu a mão para mim, como se me confiando seu último desejo. Eu vi os olhos de uma mulher que amou sua cria até o fim… Você sobreviveu, mas meus irmãos queriam terminar o que começamos. Eu fui tomado por um sentimento que não sei descrever, eu precisava te proteger. Eu te defendi, uma criança de outro povo, contra meus irmãos, sangue do meu sangue…”

Ele chorou finalmente.

“Por mais que… Eu me arrependa de ter derramado sangue dos meus irmãos aquele dia… Eu não me arrependo de te salvar. O homem que eu era, Huyagã, líder de caça, morreu aquele dia junto com Yomyraku e Môsakí. Eu fugi como um homem sem nome, carregando uma bebê humana faminta sem saber o que fazer até encontramos refúgio com os tráal. Lá eu recebi o nome de Grard Dente-de-Faca e você recebeu o leite que precisava pra viver. Devemos muito aos tráal minha filha, não deixe que alguém diga mal deles. Você não deve se lembrar, voltamos quando você tinha um verão ou dois e conheci sua mãe. O resto… É sua história.”

Uma confusão de sentimentos habitava o coração da menina naquele momento, mas tudo que ela precisava era abraçar sua mãe e seu pai. O homem que a salvou de morte, que traiu seu próprio povo e irmãos pelo choro de uma criança. Um homem que tentou salvar duas vidas, mas só conseguiu salvar uma ao custo de outras duas.

“Eu te amo pai. Obrigada por me salvar. E por me contar a verdade.”
“Eu te amo filha.”

O saurino com nome de troll pai de uma humana estava em paz com seus demônios do passado, mas mau sabia ele que novos demônios habitam em seu futuro…