Sombras de Araddun 10 – Poeta

O que está acontecendo aqui?!, este era o pensamento que não saia da cabeça de Bella. A jovem hakin não foi uma das crianças traumatizadas, nem mesmo nasceu em Zand ou Porto Deran, ela veio das terras secas de Servan, onde bandidos e fazendeiros estão praticamente em guerra. Seu pai é um destes foras da lei, assim como sua mãe. Piratas das Areias como são chamados aqueles que cavalgando cavalos e raptores ao mesmo tempo saqueiam fazendas e lutam contra a opressão dos vampiros coronéis. Heróis? Vilões? Isso é uma coisa que a história decidirá. Mas no momento, nossa história não é sobre eles, mas sobre uma criança nascida do amor entre os líderes do maior bando da história, o sátiro “Lanterna” e a elfa “Ana Bela”, a criança nascida das sombras, Antonieta Ferreira, vulgo Bella.

Mas Antonieta quis deixar este passado para trás. Ela abandonou o nome que seus pais lhe deram e usa uma o nome adaptado das palavras em abissal “Bél” e “La”. Bella tornou-se bruxa seguindo a tradição dos feéricos como aprendeu com sua avó e seguiu de carona numa carroça para Zand, chegando justamente quando o caos começou.

Agora, ela e Zura estão chegando a mansão de Iop no centro da cidade que ainda está de pé, carregando o dono do casarão nos ombros das duas pois ele não consegue andar.

“Iop! Iop! Fica comigo, você tá quase longe do perigo! Não durma meu irmão ou não terá salvação!”
“Você quer parar com isso?!”
“Santo Deus, sim! Sim, eu quero nisso por um fim! Mas não consigo parar, só posso falar enquanto rimar!”
“Aar… Agh!”
“Moço, calma!”
“Chave, embaixo…”
“Segura ele por favor, com cuidado e amor.”
“Como? Tá!”

As bochechas de Bella ficaram um em um tom de azul mais escuro. Zura se abaixou e pegou a chave escondida no vaso de plantas, então abriu a porta e voltou a ajudar Iop para levar ele até o sofá, seguindo para cozinha logo em seguida. Agora sem ver o buraco no céu ou ajudando o sátiro a andar, ela pôde perceber que é talvez a maior casa que viu na vida, parecia um palácio de histórias de cordel que seu avô contava.

Zura trouxe um pouco de água para Iop beber e novamente saiu da sala. Bella notou que ele tinha pernas com cascos como as dela e de seu pai, mas as dele eram cobertas por uma pelagem rosa muito clara. Iop parecia melhor agora, mas estava exausto ainda.

“Muito obrigado.”

A voz dele era delicada, suave, apesar de um pouco grave.

“Meu nome é Iop.”
“Bella.”

Zura chegou no mesmo momento, quase como se tivesse aparecido ali acompanhada de uma nota musical, segurando uma madeira, gase, algodão e outros materiais de primeiros socorros.

“Zura.”

Bella estranhou a poeta falando apenas o próprio nome e Zura notou isso.

“Eu não preciso rimar se apenas uma palavra eu falar.”
“Entendi…”
“As regras são estranhas eu sei, mas não fui eu que as criei.”

Zura cuidou das pernas de Iop usando alguns remédios que Bella nunca viu, a hakin acredita que sejam exclusivos desta região mais rica. Ela pegou o estranho vidro para ler, diferente de qualquer poção que sua avó ensinou, no rótulo azul estava escrito uma palavra que parecia abissal e um número enorme.

“Ben… Benzilpe…”
“Benzilpenicilina.”
“Isso é o nome de uma Sombra?”
“Não, mas a dor dessa injeção ainda me assombra.”

Zura levou a mão ao glúteo esquerdo por razões que nem Bella nem Iop compreenderam, mas o sátiro ficou feliz de ver que não era isso que ela usou na perna dele.

“A dor vai passar em breve irmão. Posso ajudar com uma canção?”
“Sem ofensa, mas não acho uma boa hora pra cantar.”
“Então podemos conversar.”
“Você rima com o que eu falo também?”
“Sim.”

Involuntariamente, Bella estava esperando uma rima. Ela colocou a mão na testa pensando no que se meteu.

“Olha, eu já vou indo…”
“Não é seguro ir agora, o mundo está acabando lá fora.”
“Eu sei me virar.”

A hakin abriu a porta e a imensa cabeça de um réptil emplumado foi jogada na porta da mansão. Ela não é supersticiosa, mas aquilo claramente não era bom sinal. Bella fechou a porta e girou em seus cascos de volta para a sala de estar.

“Estava certa ao falar. Você sabe mesmo se virar.”

Zura falou gesticulando com o dedo sobre com como Bella deu meia volta. A Odiada ignorou, caminhou e se sentou na poltrona.

“Então, o que é isso?”
“Violão.”
“Você tá com preguiça de rimar?”
“Sim.”
“E o que é um violão. Em detalhes.”
“Ai você me complica sua arrombada. É difícil improvisar e minha criatividade tá acabada.”
“Oxe! Perdeu a noção?!”
“Claro que não. Minha paciência não é infinita, então esteja preparada filha da bela Anita.”

Neste momento Bella percebeu que Zura sabe mais do que devia.

“Você me conhece?”
“Conheço várias lendas Antonieta, inclusive uma que ainda não está feita.”

Iop, agora já livre da dor, percebeu a tensão crescente, então interviu.

“Meninas, tem bolinhos na cozinha. Posso preparar um chá também. Ou café. Preferem café? Ou suco?”
“Você fique parado, não seja ousado. Eu preparo o café para mim e para descendente de Mathuzafé.”
“Agora tá inventando palavras.”
“Gostaria que eu pudesse, pois falaria com menos estresse.”

Zura foi preparar o café para o pacifista, ela mesma e aquela que tem sangue do mesmo sangue do barão abissal Mathuzafé, deixando os meio caprinos a sós.

“Então… Esse lugar todo é seu?”
“Sim, tive sorte de nascer em uma família abastada.”
“Hum…”
“Mas essa casa enorme não é luxúria minha. Eu forneço comida e estadia para quem precisa em troca de ouvir suas histórias.”
“De graça então?”
“Sim. Eu tenho mais do que preciso, então acho melhor dividir com quem precisa.”
“Você é uma boa pessoa.”

Bella falou com um sorriso.

“Obrigado. Eu só faço minha parte.”

Zura voltou com café, ao mesmo tempo um estrondo do lado de fora os assustou fazendo a humana derramar parte do líquido no chão e por sorte não pegou em seus dedos.

“O que foi isso?!”
“Cinco das sete mãos se reuniram finalmente. Agora a lenda pode seguir em frente!”

Zura colocou as xícaras sobre a mesa de centro e se apressou para abrir a porta, mas se decepcionou ao ver que não tinha ninguém.

“Ué?”
“Aaaah!”

Ela se virou e então sorriu com a visão. Um diabo e uma duende, ambos feridos, sangrando, mas determinados. O maior da dupla apontava uma adaga com cabo de osso para Iop e Bella.

“Só queremos remédios e água. Ninguém precisa se machucar.”

Bella fugiu de seu passado, dos seus pais fora da lei, mas agora estava vendo uma cena muito semelhante ao que via em Servan. A bruxa então conjurou vinhas que saíram do chão e prenderam o braço do hakin vermelho e as pernas da goblin.

“Maravilhoso!”

Zura exclamou de braços abertos, vendo as duas duplas em sua frente.

“Celebremos! A Reunião das Cinco Mãos está concluída! Os aqui presentes são aqueles que conquistarão o tempo e decidirão o destino de toda Araddun! Um irá a todos governar! Dois cairão, mas um retornará e um ascenderá! Três serão um quando todos hadrossauros tiverem cantado! Quatro viajantes visitarão este mundo no momento da perdição e glória! E cinco serão aqueles que vão ficar na sua terra natal enquanto a música e a guerra terão que partir!”

Todos pararam para ouvir o discurso, quase que afetados por uma força sobrenatural. Nem mesmo notaram que ela falou sem rimar de tão concentrados nas palavras.

“Agora que tenho a atenção de vocês, vamos abaixar as armas de uma vez.”

Amon estava abaixando a faca quando ouviu um sussurro e então levantou novamente.

“Não.”

Bella forçou ele a soltar apertando com a vinha. Gira tentou se soltar, mas não conseguiu. Iop fez menção de levantar, mas sentiu as pernas fracas.
Zura virou os olhos frustrada e deu duas palmas, fazendo a atenção de todos se voltar para ela novamente.

“Escutem tolos, eu posso ajudar. Basta você, a arma abaixar.”
“Tá de zoa?”
“Ela só fala rimando.”

Amon desconfiou de Bella, mas olhando para Zura com mais atenção ouviu uma risada estranha e por trás de uma voz grossa e rouca sussurrando uma língua incompreensível para o umbranato.

Tome cuidado. Ela não pertence a este lugar.

Amon não respondeu a voz verbalmente, mas acenou com a cabeça.

“Ô seu arrombado, abaixa a faca! Eu quero que ela ajude a gente pô!”
“Fica quieta aí! Eu não confio em tu também não!”
“O sentimento é reciprucro.”
“Recíproco.”
“Tanto faz manu!”

A humana levou uns segundos para lembrar que manu é como chamam sua espécie neste lugar. Ela decidiu ajudar os dois porque conhece a lenda ainda não escrita, desaparecendo na frente dos quatro com um som de Lá e pouco depois reaparecendo próximo aos dois com os medicamentos necessários ao mesmo tempo que todos ouviram um Dó.

“O-O que?!”
“Que truque foi esse?!”
“Que daora! Cê tem que me ensinar isso!”
“Não é truque e não dá. Mesmo se desse, sei que sua intenção é má. Eu sou viajante, como a gladiadora e o necromante. Nem escondo isso, afinal, vocês não me farão mal.”

O choque ainda era grande. Amon abaixou a faca após receber os tratamentos com algodão, remédios e gaze de Zura.

“Já que estão curiosos, eu vou contar. Vim do planeta azul de apenas um luar. Cheio de água, mas seu nome é Terra. Eu sei, essa confusão sempre ferra.”

Ela riu enquanto cuidava de Gira dessa vez. As palavras saiam com melodia e prendia atenção dos quatro, os fazendo esquecer do medo, da dor, da violência e qualquer outro male.

“Mas foi em outro lugar que recebi minha maldição. Um planeta cercado de anéis como um cinturão. Uma deusa de lá é muito travessa e temperamental e pelo visto não gostou de meu show teatral. Colocou-me está maldição, pois não tinha rimas em minha canção.”
“Você nunca me disse que canção era essa Zura.”
“Uma música cantada pelo xará de um dos umbranatos, traga a existência pela voz de André Mattos.”

Ela apontou para Amon e ele não entendeu o motivo já que os nomes são diferentes.

“Ah é, você não sabia, mas era essa a escolha de sua mãe Emília.”

As memórias distantes voltaram. Memórias perdidas, esquecidas, memórias impossíveis de serem lembradas…

“Emília, você deu a luz a um diabo!”
“Um nome? Eu gosto de André.”
“Emilía, não!”
“Será que você gosta da música André?”
“Padre, por favor! Deve haver outro jeito!”

E então Amon caiu de joelhos, lágrimas caíram de seus olhos e ninguém exceto a musicista viajante entendeu o que estava acontecendo.

“Por que…?”

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